O
caminho da crônica
Ana
Paula Moraes
Os pequenos sons balbuciam a levada do
dia e me deixam constrangida de dormir mais. Há sol lá fora. Então, como quem
ritualisticamente se espreguiça ou toma água quando acorda, pego minha caneta e folha
em branco. Em tempos digitais, faço à moda antiga, sou romântica e jovem. Desço
a rua de casa e lá, longe, vejo prédios despontando que continuam para mim a
anunciar o futuro.
Em contraste com o céu, azul, azul,
uniformemente pintado, sem vacilos, desproporções, é a vida pois, contínuo a
descer ruas e desta vez atento-me para o fato de morar em uma espécie de vale e
que desejo saber seu outro lado. Porque mistério é aquilo que meus olhos veem
ao longe, mas meu corpo fica. Ah, as estrelas: avisam a gente todos os dias que
tudo é muito, muito além-daqui-agora.
Atravesso uma ponte, lembrando que
morria de medo de atravessá-la quando era pequena junto de mamãe: tinha medo de
que ela caísse e fosse embora. E eu, que não sabia e não sei nadar, teria de me
conformar com aquilo que eu ainda não poderia e não posso.
Encontro a rua, um portal de árvores.
É como se tudo já existisse: é como se este lugar fosse um polo magnetizador,
me atraindo para o indeterminável. E lá, bem ao fundo, encontro-me: uso uma
camiseta branca, calça preta, sapatilha. Estou com a mesma caneta, folhas
tiradas do mesmo caderno, mexendo os lábios, pois falo sozinha, ontem e amanhã.
Chego mais perto e sim, sou eu! De tudo igual agora, menos a tonicidade da
pele: sou eu com peles flácidas, as gorduras moles, mais pintas. Aos nos
olharmos, reconhecemo-nos. Os olhares são idênticos, além da roupa e dos objetos.
E desse, reconhecemos também que nossa história, tão intensa e cheia, é
passageira. E é de crônica que vamos escrevendo exatamente a cena que agora
dividimos: ela já não se pergunta, enquanto eu hoje persisti no mistério.
Ambas querem ocupar o lugar uma da
outra. As folhas caem ao nos abraçarmos, sequenciando a história de nossas
vidas: minha última crônica será sobre o dia que encontrei comigo mesma e soube
do que era.
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