terça-feira, 24 de dezembro de 2013


Além dos confins do homem

                                                                                                  

Tenho uma queda pelos animais. Sério, mais do que por gente. Já ouvi de muitos conhecidos que seres humanos produzem “cultura”, que são da mesma “raça” que a minha. Acontece que desde pequena sempre vi os bichos como criaturas próximas, fascinantes, diferentes: e ponto. Não me perguntava por que não tinham rabos, penas, voavam. Se havia um bando deles, assim como os humanos, não eram eles os estranhos, inferiores: eram apenas diferentes de mim.
Snoopy é um cão que venho atualmente ajudando a conseguir um lar. Ora, a forma como cheguei até ele me fez pensar muito mais na velhice, na solidão, na perda de capacidades do que tantas pessoas idosas que já vi. E sobre isso, até tenho recordações contundentes. Quando era pequena, por volta dos três anos, minha mãe trabalhava em um asilo para velhos. Fui algumas vezes ao seu trabalho, pois não tinha quem ficasse comigo. Me lembro de diversas personas: do homem alto e solitário parado ao lado de seu guarda-roupa; da velha senhora que achava minha mãe uma terrorista, que se aproveitava de sua condição para maltratá-la; das senhoras irmãs que adoravam falar dos primórdios de suas juventudes. Via mamãe higienizando alguns decrépitos e a expressão que as pessoas viram bebês quando ficam muito velhas me foi verdade desde cedo. Apenas trocam o choro por resmungos, desagrados e até xingamentos.
Tentando ultrapassar a barreira do absurdo, vi Snoopy querendo prosseguir enquanto esbarrava em uma parede que logo depois desviou. Enquanto os obstáculos o avisavam que era preciso mudar de rota, desci do carro e fui averiguar: cego, com começo de inanição, sujo. Os moradores da rua onde está dizem que nem sempre foi assim; ele era brincalhão, todos queriam que Snoopy adentrasse em seus lares, lhe davam comida, água, atenção. Velho, para que serviria? Agora, há um bondosa alma que convenci a abrigá-lo enquanto busco auxílio para resgatá-lo.
Ao procurar a responsável pelo cão, dei de cara com uma mulher que me deu motivos parcos e esfarrapados para ter abandonado Snoopy. De que o cachorro acostumou a ficar na rua a tornar-se agressivo. Percebi que essa estava mais preocupada em se justificar para o namorado do que com o ser que lhe proporcionou tantos momentos agradáveis enquanto era útil.
O paradigma cartesiano-kantiano de que os animais são coisas não é algo somente aplicado a ciência contemporânea e as indústrias: o que faz um dono abandonar seu cachorro no momento em que mais precisa é não levar em conta que esse ser, cuja forma é diferente, possui características que nos aproximam dele. Fome é fome, dor é dor. Morte é a inexistência da vida, para todos.  
Ao me tornar vegetariana este ano, quis que meus atos fossem condizentes com minhas ideias. Parar de comer carne foi algo difícil: no começo me sentia parte de um desenho animado, onde o cheiro dos lanches, do churrasco vendido na rua fazia com que eu visse todos em formato de salsicha ou linguiça. A verdade, passado o período crítico, por volta de um mês, e quase um ano de minha decisão, sou uma pessoa muito mais feliz nesse sentido.
A tese darwiniana da origem comum entre animais e homens representa uma contribuição fundamental e decisiva para o destronamento do homem de seu lugar de senhor absoluto do mundo natural. Antes, a criação divina do homem por Deus nos colocava em um grande abismo com relação as demais espécies. Mais especificamente em The descent of man and selection in relation to sex (1871) e The expression of emotions in man and animals (1872) Charles Darwin discorre sobre o “princípio de continuidade”: ele defende que a diferença entre nós humanos e os animais não é de tipo, mas de grau. A evolução é vista como uma função da mudança da população e não da mudança do indivíduo, conforme suas necessidades de adaptação ao meio, conservando algumas características genéticas anteriores e ocorrendo as adaptações. A evolução natural destrói, não cria. 
Darwin foi um grande promotor e entusiasta da racionalidade científica como componente de um projeto civilizador. No entanto, não limitou-se a estreitar sua visão para com os animais: isso seria estreitar seu pensamento. 
Da última vez que eu visitei Snoopy, ele resmungava enquanto sonhava. Sempre me perguntei com que os cachorros sonham. Fiquei feliz, porque semelhante ao conto de Cecília Meireles, “Um cão  apenas”, esse também deve esquecer enquanto dorme. Queria que também tivesse a síndrome de Walter Mitty, igual a personagem que originou seu nome: talvez assim, além de esquecer, poderia acobertar suas necessidades com fantasias esperando por dias melhores. Como todo olhar de cachorro, esse tem poesia: é a poesia do inexistente. Snoopy desaparece a todo momento para aqueles que não percebem que fome é fome, dor é dor e que a morte é a inexistência da vida, para todos.





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