Além dos confins do homem
Tenho uma
queda pelos animais. Sério, mais do que por gente. Já ouvi de muitos conhecidos
que seres humanos produzem “cultura”, que são da mesma “raça” que a minha.
Acontece que desde pequena sempre vi os bichos como criaturas próximas,
fascinantes, diferentes: e ponto. Não me perguntava por que não tinham rabos,
penas, voavam. Se havia um bando deles, assim como os humanos, não eram eles os
estranhos, inferiores: eram apenas diferentes de mim.
Snoopy é
um cão que venho atualmente ajudando a conseguir um lar. Ora, a forma como
cheguei até ele me fez pensar muito mais na velhice, na solidão, na perda de
capacidades do que tantas pessoas idosas que já vi. E sobre isso, até tenho
recordações contundentes. Quando era pequena, por volta dos três anos, minha
mãe trabalhava em um asilo para velhos. Fui algumas vezes ao seu trabalho, pois
não tinha quem ficasse comigo. Me lembro de diversas personas: do homem alto e
solitário parado ao lado de seu guarda-roupa; da velha senhora que achava minha
mãe uma terrorista, que se aproveitava de sua condição para maltratá-la; das
senhoras irmãs que adoravam falar dos primórdios de suas juventudes. Via
mamãe higienizando alguns decrépitos e a expressão que as pessoas viram
bebês quando ficam muito velhas me foi verdade desde cedo. Apenas trocam o
choro por resmungos, desagrados e até xingamentos.
Tentando
ultrapassar a barreira do absurdo, vi Snoopy querendo prosseguir enquanto
esbarrava em uma parede que logo depois desviou. Enquanto os obstáculos o
avisavam que era preciso mudar de rota, desci do carro e fui averiguar: cego,
com começo de inanição, sujo. Os moradores da rua onde está dizem que nem
sempre foi assim; ele era brincalhão, todos queriam que Snoopy adentrasse em
seus lares, lhe davam comida, água, atenção. Velho, para que serviria? Agora,
há um bondosa alma que convenci a abrigá-lo enquanto busco auxílio para
resgatá-lo.
Ao
procurar a responsável pelo cão, dei de cara com uma mulher que me deu motivos
parcos e esfarrapados para ter abandonado Snoopy. De que o cachorro acostumou a
ficar na rua a tornar-se agressivo. Percebi que essa estava mais preocupada em
se justificar para o namorado do que com o ser que lhe proporcionou tantos
momentos agradáveis enquanto era útil.
O paradigma cartesiano-kantiano
de que os animais são coisas não é algo somente aplicado a ciência
contemporânea e as indústrias: o que faz um dono abandonar seu cachorro no
momento em que mais precisa é não levar em conta que esse ser, cuja forma é
diferente, possui características que nos aproximam dele. Fome é fome, dor é
dor. Morte é a inexistência da vida, para todos.
Ao me
tornar vegetariana este ano, quis que meus atos fossem condizentes com minhas
ideias. Parar de comer carne foi algo difícil: no começo me sentia parte de um
desenho animado, onde o cheiro dos lanches, do churrasco vendido na rua fazia
com que eu visse todos em formato de salsicha ou linguiça. A verdade, passado o
período crítico, por volta de um mês, e quase um ano de minha decisão, sou uma
pessoa muito mais feliz nesse sentido.
A tese
darwiniana da origem comum entre animais e homens representa uma contribuição
fundamental e decisiva para o destronamento do homem de seu lugar de senhor
absoluto do mundo natural. Antes, a criação divina do homem por Deus nos
colocava em um grande abismo com relação as demais espécies. Mais
especificamente em The descent of man and selection in relation to sex (1871) e
The expression of emotions in man and animals (1872) Charles Darwin discorre
sobre o “princípio de continuidade”: ele defende que a diferença entre nós
humanos e os animais não é de tipo, mas de grau. A evolução
é vista como uma função da mudança da população e não da mudança do indivíduo, conforme suas necessidades de adaptação ao meio, conservando algumas características genéticas anteriores e ocorrendo as adaptações. A evolução natural destrói, não cria.
Darwin
foi um grande promotor e entusiasta da racionalidade científica como componente
de um projeto civilizador. No entanto, não limitou-se a estreitar sua visão
para com os animais: isso seria estreitar seu pensamento.
Da última
vez que eu visitei Snoopy, ele resmungava enquanto sonhava. Sempre me perguntei
com que os cachorros sonham. Fiquei feliz, porque semelhante ao conto de
Cecília Meireles, “Um cão apenas”, esse também deve esquecer enquanto
dorme. Queria que também tivesse a síndrome de Walter
Mitty, igual a personagem que originou seu nome: talvez assim, além de
esquecer, poderia acobertar suas necessidades com fantasias esperando por dias
melhores. Como todo olhar de cachorro, esse tem poesia: é a poesia do
inexistente. Snoopy desaparece a todo momento para aqueles que não percebem que
fome é fome, dor é dor e que a morte é a inexistência da vida, para todos.
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